terça-feira, 15 de maio de 2007

Alegações de Direito (Subt 11)

Proc.:

Exmos. Senhores
Juizes de Direito do Tribunal
Administrativo de Círculo de Loulé



Na acção proposta por Associação de Defesa do Ambiente de Vale das Rãs e Olívia da Serra, vêm as AA. apresentar as suas alegações sobre o aspecto jurídico da causa, o que faz com os fundamentos seguintes:

I – O deferimento tácito e o direito comunitário

A política de ambiental da Comunidade tem os seus parâmetros definidos no art. 174º e seguintes do TCE; no cumprimento destas obrigações, os órgãos comunitários tem adoptado vastíssima legislação. Para tal, tem-se principalmente recorrido à consagração de procedimentos que permitem uma ponderação dos vários interesses em causa, introduzindo racionalidade e objectividade nas decisões administrativas. De facto, tal como se tem vindo a reflectir, a Administração Pública tem o verdadeiro e derradeiro papel de efectivação de direitos, nomeadamente fundamentais. E essa protecção passa, em grande parte, pelo estabelecimento de rigorosas regras procedimentos.
É neste contexto que surge a Directiva 85/337 CE do Conselho, de 27 de Junho, que impõe a “avaliação dos efeitos no ambiente de projectos públicos e privados susceptíveis de terem um impacto considerável no ambiente” (art. 1º/1).
Nesta sequência, o Decreto-Lei 69/2000, de 3 de Maio, veio transpor a directiva. Contudo, o seu art.19º consagra a possibilidade de deferimento tácito. Ora, vêm as AA. alegar que essa consagração vem ofender o direito comunitário, razão pela qual deve ser considerada inaplicável pelo Tribunal.
Como é sobejamente conhecido, a jurisprudência comunitária tem vindo a desenvolver jurisprudência constante no sentido de densificar o Tratado, do qual resultou o princípio do primado e da efectividade do direito comunitário. Nesse sentido, Costa/ENEL (Processo 6/64) “Uma obrigação imposta aos Estados-Membros por força do Tratado CEE, não acompanhada de qualquer condição, nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à adopção de qualquer acto pelos Estados ou pela Comissão, é juridicamente perfeita e, consequentemente, susceptível de produzir efeitos directos nas relações entre os Estados-Membros e os seus nacionais”; é neste sentido que deve ser interpretada a norma da directiva em causa que dispõe que “Os Estados-membros tomarão as disposições necessárias para garantir que, antes de concedida a aprovação, os projectos que possam ter um impacte significativo no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensão ou localização, fiquem sujeitos a um pedido de aprovação e a uma avaliação dos seus efeitos.” Ora a figura do deferimento tácito claramente viola esta disposição da directiva, que clara, precisa e incondicionalmente impõe aos Estados o dever de estabelecer medidas que garantir a referida ponderação e avaliação.
O Tribunal de Justiça já decidiu veemente que o deferimento tácito não é compatível com este dever no caso Comissão c. Suiça “uma autorização tácita não pode ser compatível com as exigências das directivas visadas pela presente acção”; torna-se assim indubitável que o deferimento tácito previsto neste âmbito é claramente contra o direito comunitário e violadora do princípio do primado cuja sanção é, tal como afirmado pelo Tribunal de Justiça, a inaplicabilidade (Acórdão Factortame – Processo C- 213/89 “Daqui resulta que o juiz (…) é obrigado a não aplicar essa norma”).
Contudo, contra este raciocínio poderá argumentar-se que o efeito directo das directivas é negado horizontalmente, ou seja, nas relações entre particulares: porque o efeito directo é uma sanção em relação ao incumprimento dos Estados, não deverá admitir-se a sua utilização contra um particular. Contudo, o que é recusado neste Acórdão é a possibilidade de invocação de efeito directo pelo Estado, contra o particular. Sem dúvida que aceitá-la seria uma solução injusta, “convém, com efeito, evitar que o Estado possa tirar proveito da sua inobservância do direito comunitário” (Acórdão Marshall – Processo 152/84). Contudo não é esse aqui o caso: com efeito, trata-se da invocação de um particular de uma norma de direito comunitário que constitui um direito na sua esfera jurídica, e que também carece (e merece) tutela jurisdicional. A decisão contrária, “significaria negar o carácter efectivo de compromissos assumidos” (Acórdão Simmenthal – Processo 196/77), e constituiria um recurso fácil de verdadeira fraude ao direito comunitário. Com efeito, não pode tal figura ser admitida neste âmbito, pois que a procedimentalização correcta das decisões em matéria de impacto ambiental é a única forma de garantir a correcta aplicação do direito comunitário, sendo que posteriormente poderá o particular envolvido efectivar a responsabilidade do Estado pelos danos que lhe causou.
Assim, “o órgão jurisdicional chamado a interpretar [o direito nacional] é obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da directiva, para atingir o resultuado por ela prosseguido e cumprir desta forma [o] Tratado” (Acórdão Marleasing – Processo C – 106/89); impõe-se assim, claramente, uma interpretação conforme do art. 19º do Decreto - Lei 69/2000, de 3 de Maio, à directiva que implicará, no caso concreto, a sua total desaplicação.

II – O deferimento tácito e o direito constitucional

Tal como resulta da Constituição (art. 9ºd) e) e art. 66º) o direito ao ambiente é visto na dupla perspectiva objectiva e subjectiva. Assim, ele surge como uma tarefa estadual (que cumpre ao Estado garantir) e como um direito fundamental dos cidadãos, previsto enquanto direito social que cabe ao Estado garantir.
Claro que, neste caso, caberia ainda indagar se não estaríamos a restringir excessivamente o direito fundamental à livre iniciativa económica privada (art. 61º) e também o direito fundamental à propriedade privada (caso se opte pela inclusão do ius aedificandi): estamos perante um conflito entre direitos fundamentais.
É precisamente por esta ser uma área tendencialmente conflituante que o legislador comunitário previu a necessidade de criação de normas procedimentais rigorosas que permitissem uma solução que permitisse uma correcta ponderação dos interesses em causa, obedecendo assim ao princípio da harmonização ou da concordância prática.
O deferimento tácito é assim, neste sentido, uma violação do direito fundamental ao ambiente porque possibilita uma verdadeira hiperbolização de um dos direitos fundamentais, afectando o núcleo essencial de outro, por não haver uma ponderação dos interesses em causa. Além do mais, é permitir à Administração a adopção de actos ilegais, consistindo o deferimento tácito uma permissão legal para defraudar a lei (sendo em visão negativa confirmada pela tendência recente para o desaparecimento de actos tácitos).
Por outro lado, esta norma viola ainda o princípio constitucional da prevenção, previsto no art. 66º: a sua consagração permite que um acto administrativo seja praticado sem qualquer juízo de prognose em relação aos impactos ambientais de determinado projecto; e ainda o princípio do desenvolvimento sustentável, porque a dimensão ambiental não é considerada. Consequentemente, este acto só pode estar ferido de inconstitucionalidade, por violação do art. 66º da Constituição.
Por outro lado, e como já foi demonstrado anteriormente, esta norma é claramente violadora do princípio do primado e efectividade do direito comunitário pelo que deve ser considerada inconstitucional por aplicação do art. 8º/4 da Constituição.

III – O deferimento tácito e o direito administrativo

Finalmente, há que analisar o mesmo problema da perspectiva do direito administrativo. Os problemas que se colocam são os mesmos, pelo que remeto para o que anteriormente foi explanado. O acto de deferimento tácito é nulo, por violação do artigo 133º/2 c) e d) do Código de Procedimento Administrativo, já que estamos aqui perante um acto com conteúdo legalmente impossível e em violação do direito fundamental ao ambiente.

IV – Os actos de licenciamento do Município de Rãs do Mar

São várias as causas de invalidade das licenças de urbanização e construção.
Desde logo, e tendo em conta a nulidade do acto de deferimento tácito (por violação do direito comunitário, do direito constitucional e do direito administrativo), os actos são nulos por violação do artigo 20º/1 do Decreto-Lei 69/2000 de 3 de Maio, como prescreve o artigo 20º/3 do mesmo diploma.
Mesmo que assim não se considerasse, há que retirar consequência do facto de estes actos não apresentarem na sua fundamentação uma devida ponderação em relação às questões ambientais levantadas pela comissão de avaliação. Estamos assim perante um vício de falta de fundamentação (art. 268º Constituição, 124º do CPA e 19º/5 Decreto-Lei 69/2000 de 3 de Maio), cuja consequência é a nulidade, nos termos do art. 133º/2 d) do Código de Procedimento Administrativo.
Por outro lado, sempre os actos seriam nulos, em aplicação do art. 133º/2 d) do Código de Procedimento Administrativo, já que foi violado o dever fundamental de audiência prévia dos interessados (artigo 100º do Código de Procedimento Administrativo e 267º/1 da Constituição), sendo que neste caso era obrigatória a realização de uma discussão pública, imposta pelo artigo 22º/5 do Decreto-Lei 555/99 de 20 de Dezembro e pelo Plano Director Municipal de Rãs do Mar). Como se sabe, é comummente aceite que a audiência dos interessados é um direito fundamental: para além de legitimar a actuação administrativa, é essencial para uma correcta representação dos interesses em causa. Decorre directamente da dignidade da pessoa que cada um deve ser ouvido em relação ao actos que interferem com a sua ordem jurídica. Neste caso concreto, revela-se como uma manifestação de democracia participativa, essencial para a democraticidade das decisões.

V – Responsabilidade dos Réus

Como resultado do início dos trabalhos, foram já causados vários danos, com destruição de dunas e ocupação da praia. Assim, e nos termos do artigo 52º/3 da Constituição e do artigo 22º da Lei 83/95, de 31 de Agosto, devem os RR. ser condenados ao pagamento de uma indemnização pelos danos que foram causados ao ambiente.

Assim, em conclusão, deve ser:

- declarada a nulidade do acto de deferimento tácito do R. MAOTDR com base nos artigos 133º/2 c) e d) do Código de Procedimento Administrativo, 8º/4, 9º e 66º da Constituição;
- declarada a nulidade do actos de licença de urbanização e de construção do R. Município de Rãs do Mar por violação dos artigos 20º/1 do Decreto-Lei 69/2000 de 3 de Maio, 100º do Código de Procedimento Administrativo e 267º/1 da Constituição, com fundamento nos artigos 133º/2 d) do Código de Procedimento Administrativo, 20º/3 do Decreto-Lei 69/2000 de 3 de Maio; e
- condenados os RR. no pagamento de uma indemnização por danos difusos ambientais no valor de 50.000 €, com fundamento nos artigos 52º/3 da Constituição e 22º da Lei 83/95, de 31 de Agosto.

assim fazendo JUSTIÇA!

5 comentários:

Diana Grilo disse...

Enquanto “Magistrada do Ministério Público”, gostava de referenciar mais um tópico de análise que é preciso ter em conta nesta questão relativa ao Deferimento Tácito.
De facto, parece-me inegável a inconstitucionalidade do art. 19º do Regime de AIA por todos os fundamentos sabiamente referidos.

Todavia, como contornar as alegações do Ministro do Ambiente quando refere na sua contestação (mais especificamente no ponto 23) que “o artigo 19º encontra-se em vigor, não tendo sido declarado inconstitucional por violação da Constituição ou do Direito Comunitário, razão pela qual cabe à Administração Pública agir em conformidade com o que nele se determina”?

Deste modo, cabe indagar: Será que a Administração está efectivamente obrigada a agir em conformidade? Será que a Administração não está sujeita a outro tipo de vinculação?
Neste seguimento, penso que a questão principal que se impõe discutir, tendo em conta que a regra do art. 19º ainda não foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral, reside na eventual vinculação directa da Administração perante o Direito Comunitário.

Ora, ao contrário do que acontecia tradicionalmente em que a Administração estava vinculada única e exclusivamente à Lei, hoje em dia, o âmbito material de acção administrativa de cada Estado-Membro está, também, condicionado pelo Direito Comunitário.
Com efeito, hoje, o Bloco de Normatividade da Administração Pública inclui o Direito Comunitário, pelo que este tem a capacidade de redefinir o âmbito e extensão da intervenção pública. Isto significa que o Direito Administrativo nacional pode ser utilizado para tutelar, simultaneamente, interesses públicos comunitários.

Assim sendo, questiona-se: o que acontece se existir uma antinomia jurídica entre um acto comunitário (no caso em análise trata-se da Directiva 85/337) e uma norma interna posterior (Decreto-Lei 69/2000, especificamente o seu art. 19º)?

Que norma os órgãos administrativos devem aplicar preferencialmente? Devem preferir o critério hierárquico (aplicando o acto comunitário) ou o cronológico (aplicando a norma interna)?

Antes de mais, esclareça-se que os órgãos administrativos nunca têm competência para desaplicar normas inconstitucionais, nem para fiscalizar a validade do Direito Comunitário!

Voltando à questão colocada, alguma doutrina admite que nos casos em que existe uma contrariedade manifesta ou uma decisão jurisprudencial nesse sentido (de facto esta já se verificou no Acórdão do TJ de 14/06/2001, Prcesso nº C-230/00), a Administração deve poder desaplicar a norma contrária ao Direito Comunitário.
Nesta linha de orientação, PAULO OTERO considera que a aplicabilidade directa da cláusula do art. 7/6º CRP consubstancia um critério automático de resolução de antinomias jurídicas, determinando que a Administração Pública deve dar sempre preferência aos actos comunitários, desaplicando a norma interna primária.
Esta solução impõe-se também pelo Princípio do Primado e da Colaboração Leal.
De acordo com esta corrente doutrinária, os órgãos administrativos poderiam analisar a conformidade do Direito interno com o Direito Comunitário e, se entenderem que existe desconformidade, desaplicar aquele em favor deste.

Em suma, independentemente do art. 19º estar ou não em vigor, o Ministro do Ambiente nunca poderia aplicá-lo consciente e deliberadamente, sob pena de incumprir o Direito Comunitário, integrante do Bloco de Juridicidade a que está directamente vinculado!

Miguel M. disse...

Tens toda a razão, Diana, mas acho que há aqui um equívoco. O que sucede é que o Ministro do Ambiente não fez nada (literalmente)! Ou seja, não foi o Ministro que decretou o deferimento tácito (isso seria decidir, pelo que o deferimento não seria tácito) nem sequer houve uma certificação da parte do Ministro no sentido de reconhecer a passagem do prazo de 140 dias. O Ministro nada fez e o deferimento formou-se ope legis. Logo, quem devia desaplicar a norma em causa era a entidade administrativa a jusante no procedimento. Quem tomasse como pressuposto de decisão a formação de um deferimento tácito é que estaria a aplicar uma norma nacional (no caso, o art. 19º do DL 69/2003) contrária ao Direito Comunitário - quando, na realidade, deveria abster-se de agir com fundamento na consequência legal de uma hipotética decisão (a nulidade, nos termos do art. 20º do diploma em questão).

Assim, parece-me que o Ministro não incumpriu nada, o que sucede verdadeiramente é que a norma que atribui um valor jurídico positivo a essa passividade do Ministro é, em si, inválida e, consequentemente, nulas são também todas as outras decisões administrativas.

Quanto à resolução de antinomias entre o Direito Comunitário e a Ordem Jurídica interna, tendo a concordar com a doutrina que citaste, embora haja que sublinhar o facto de não ser unânime, havendo quem sustente que a Administração Pública nacional, apesar se ser simultaneamente Administração Pública comunitária, se encontra adstrita à aplicação da norma mais próxima, não lhe cabendo formular juízos de validade - esta tese alicerça-se na separação e interdependência de poderes.

Quanto à questão concreta do procedimento de AIA, a existência do Acórdão do TJ de 14/06/2001, reforçando o que resultava já da directiva, torna mais difícil sustentar que o art. 19º do regime de AIA não compromete o primado. Mais do que uma directiva (e aqui o efeito directo é não é determinante, dado que se dirige a órgãos jurisdicionais), surge uma decisão jurisprudencial que impõe uma avaliação casuística em sede de AIA. A minha opinião vai no sentido de interpretar essa obrigação de forma a garantir uma decisão expressa em todos os casos apresentados perante a Administração. Porém, há que ter em conta que poderá haver quem sufrague o entendimento de que a directiva (e, com ela, a jurisprudência do TJ) apenas determina que se sujeitem os projectos a um procedimento de AIA, sem no entanto excluir a possibilidade de, em certos casos, haver um deferimento tácito fundado na tutela das expectativas dos cidadãos - sendo que as questões ambientais seriam salvaguardadas pelo n.º5 do artigo 19º.

Por tudo isto, creio que é necessário rever o regime de AIA, eliminando dispensas e deferimentos tácitos. E, ao mesmo tempo, agilizando procedimentos e respeitando prazos, de modo a garantir que o desenvolvimento sócio-económico se coadune plenamente com uma rigorosa protecção das componentes ambientais.

Miguel M. disse...

Quanto às alegações da Heloísa, pouco há a dizer além de reconhecer que estão muito bem elaboradas e que apresentam os fundamentos essenciais para defender a posição dos ambientalistas.

No entanto, falando fora da simulação (e, por isso, sem tomar partido) tenho de confessar algumas dúvidas quanto a um aspecto concreto das alegações. Deixo aqui a minha interrogação.

Quando se diz "O deferimento tácito é assim, neste sentido, uma violação do direito fundamental ao ambiente porque possibilita uma verdadeira hiperbolização de um dos direitos fundamentais", não consigo evitar pensar se isso será realmente assim. Isto porque não deixa de ser verdade que o art. 19º/5 ainda assim prevê que se tenha em consideração o factor ambiental na decisão subsequente. Dessa forma, a preocupação com a garantia da iniciativa privada (e não só, dado o âmbito de aplicação do diploma) não teria um valor absoluto, uma vez que haverá em qualquer caso uma ponderação tendo por base o EIA. E o mesmo se diga a propósito da violação do art. 66º da CRP.

Já quando se afirma que "a sua [do deferimento tácito] consagração permite que um acto administrativo seja praticado sem qualquer juízo de prognose em relação aos impactos ambientais de determinado projecto", o que é tendencialmente verdadeiro apesar de, como se acabou de mostrar, não inteiramente, o mais chocante é que mesmo em caso de proposta de DIA desfavorável o Ministro do Ambiente possa contrariar essa proposta por sua decisão individual, apesar de sobre ele recair um especial dever de fundamentação.

O Direito Comunitário obriga a uma decisão do caso concreto, obstando a um deferimento tácito, o qual, estando legalmente previsto, deve ser desaplicado pela Administração em face da jurisprudência do TJ. Essa questão deve ser levantada junto dos tribunais portugueses e/ou a lei deve ser alterada no sentido de garantir uma correcta e competente ponderação das questões ambientais na aprovação dos projectos. O deferimento tácito, apesar de procurar proteger os interesses de quem inicia o procedimento, descura a tutela do ambiente, protegido objectiva e subjectivamente a nível constitucional, podendo os actos concretos de deferimento ao abrigo do art. 19º ser violadores de direitos fundamentais. Contudo, a válvula do art. 19º/5 continuará a ser usada para justificar o actual regime, exigindo-se vontade política para mudar.

Para não descurar os direitos e interesses legítimos de quem pretende investir, o mais correcto é aproveitar para agilizar todo o procedimento e garantir boas decisões em pouco tempo. E a responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas públicas tem, impreterivelmente, de merecer um novo tratamento normativo, que permita realmente dar resposta àqueles casos em que o particular deve ser ressarcido: não através de carte blanche em sede de AIA, mas sim através da correspondente indemnização.

Diana Grilo disse...

Primeiramente, quero esclarecer o equívoco alertado pelo Miguel no sentido de que não foi o Ministro do Ambiente que actuou deliberada e conscientemente em conformidade com o art. 19º, mas antes o Município que, enquanto entidade licenciadora, emitiu uma licença com base em uma decisão de impacto ambiental formada tacitamente, pelo que foi este que incumpriu o Direito Comunitário.
Fica, assim, feita a correcção, porém, a questão suscitada mantém-se…


O Ministério Público vem, ainda, por esta via sublinhar a sua não concordância relativamente ao pedido de DANOS DIFUSOS AMBIENTAIS formulado pelos autores. Ora, estes pedem que os RR sejam condenados no pagamento de uma indemnização com base nos arts. 52º/3 CRP e 22º da Lei 83/95.

Desde logo, a nível legal surgem-nos uma miríade de problemas decorrentes do facto do art. 22º confundir duas realidades totalmente contrapostas entre si…isto porque, uma coisa é a tutela objectiva da legalidade e do interesse público, efectivada pela Acção Popular, outra coisa diferente é a tutela jurídico-subjectiva que tem por objecto a defesa de interesses próprios e/ou direitos subjectivos.

Ora, para complicar ou para descomplicar esta situação, os autores não especificaram, nem na Petição Inicial nem nas suas Alegações de direito, o nº do art. 22º em que se baseavam para pedir a condenação dos RR naquela indemnização.

Então, se entendessemos que os autores pretendiam referir-se ao nº1 ou nº 3 concluiriamos que estariam a pedir, na realidade, uma indemnização ambiental para tutelar interesses próprios, decorrentes de lesões individualizáveis. E, neste caso, a Acção Popular não teria sido o meio processual adequado para defesa daqueles direitos.

Por sua vez, se se tratasse, de facto, da defesa de certos interesses públicos baseada no nº2, ficariamos sem conseguir concretizar esta disposição … Para quem iria a indemnização fixada globalmente?
De uma situação não temos dúvidas…é que ninguém pode ter a pretensão de adquirir um benefício pecuniário, adveniente de uma indemnização, à custa de uma lesão ambiental que afecta toda a comunidade. Tal buleria manifestamente com a própria Ideia de Direito e de Justiça subjacente a um Estado de Direito Democrático.

Logo, a existir uma lesão objectiva do ambiente, quanto muito, impunha-se que o valor de uma eventual indemnização ficasse consignada a certos fins de interesse público em matéria ambiental.

No entanto, entende o Ministério Público que a Responsabilidade Civil do art. 22º/2 não tem carácter ressarcitório ou reconstitutivo (função tradicional deste instituto jurídico), mas antes punitivo ou sancionatório, à imagem e semelhança dos “Punitive Damages” existentes nos sistemas anglo-saxónicos.

Nestes termos, o actor popular não poderia pedir a condenação dos RR no pagamento de uma indemnização, mas antes a sua condenação em uma sanção pecuniária, de matriz exclusivamente punitiva.

E assim faria-se JUSTIÇA AMBIENTAL…

Amarela disse...

Em relação à questão da indemnização gostaria de deixar algumas notas.

O objectivo da inclusão deste pedido tinha precisamente o objectivo de trazer à colação a discussão sobre o art. 22º/2 da LPPAP. E levanta, pelo menos, duas questões:
1. qual a natureza desta indemnização?
2. para quem deve ir a indemnização?

Em relação à primeira questão, como foi sublinhado pela Diana, a lei não nos traz respostas conclusivas. Mas onde o legislador não foi claro tem o intérprete de trazer alguma luz! E concordo com o Professor Vasco Pereira da Silva quando defende que parece estarmos perante uma concretização de punitive damages, à maneira dos sistemas anglo-saxónicos.

Já na maneira como tal vincula o autor é que já não concordo com a Diana quando refere "Nestes termos, o actor popular não poderia pedir a condenação dos RR no pagamento de uma indemnização, mas antes a sua condenação em uma sanção pecuniária, de matriz exclusivamente punitiva."

Isto porque, independentemente da interpretação em relação do art. 22º/2, a expressão legal e constitucinal é "indemnização" e não cabe aos autores fazer considerações sobre a natureza jurídica do instituto! E nunca poderia ser negada a sua atribuição com base em tal argumento.

Em relação à segunda questão proposta, ela de facto não foi abordada na simulação. O facto é que a indemnização está prevista constitucionalmente e, mesmo que discordemos, há que lhe atribuir efeito útil. Tendo em conta a função da acção popular, penso que faria sentido consignar a indemnização à melhoria de condições ambientais no Município de Vale das Rãs.

Contudo, tenho de concordar com a decisão do colectivo que, na leitura da sentença, explicitou que não tinham sido provados os danos alegados e por isso negava provimento ao pedido.