domingo, 20 de maio de 2007

Acórdão proferido a 17 de Maio de 2007 (Subt 11)

Acórdão proferido a 17 de Maio de 2007
no processo nº 36/2007
do Tribunal Administrativo de Círculo de Loulé

A Associação de Defesa do Ambiente de Vale das Rãs e Olívia da Serra, na qualidade de actor popular, vem propor acção administrativa especial contra Joana da Ilha; Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (MAOTDR); e Município de Rãs do Mar, requerendo a declaração de nulidade do acto de deferimento tácito do MAOTDR com base nos art.ºs 133º, nº2, al.ªs c) e d) do Código de Pocedimento Administrativo, 8º, nº4, 9º e 66º da Constituição; a declaração de nulidade dos actos de licença de urbanização e construção do Município de Rãs do Mar, por violação dos art.ºs 20º, nº1 do Decreto-Lei nº 69/2000, 22º, nº1 do Decreto-Lei nº 194/2000, 100º do Código de Procedimento Administrativo e 267º, nº1 da Constituição e a condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização por danos difusos ambientais no valor de 50.000€.

Matéria de facto:

Com base nos documentos fornecidos a este tribunal e na prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, dão-se como provados os seguintes factos:
- A ré Joana da Ilha requereu a 1 de Abril de 2006 ao Município de Rãs do Mar a concessão de licença de urbanização e construção para fazer surgir uma ilha artificial, a 5 Km ao largo da praia, no âmbito do empreendimento turístico “Vale das Rãs” já existente;
- Aí pretende construir 5 hóteis, 2 campos de golfe e 1 aldeamento turístico de luxo;
- O projecto mereceu parecer desfavorável da comissão de avaliação no âmbito do procedimento de avaliação de impacte ambiental (AIA) a 25 de Outubro de 2006;
- Procedeu-se, na sequência desse procedimento, a consulta pública, conforme o previsto no art.14º Decreto-Lei nº 69/2000;
- A Autoridade da AIA (CCDR-Algarve) emite proposta de declaração de impacte ambiental (DIA) desfavorável a 6 de Novembro de 2006, mas não a remete ao réu MAOTDR, incumprindo o disposto no art.16º, nº2 do Decreto-Lei nº 69/2000;
- Em consequência disto, produz-se deferimento tácito de DIA, por falta de decisão expressa do réu MAOTDR, nos termos do art.19º do Dreto-Lei nº 69/2000;
- O réu Município de Rãs do Mar emite licença de urbanização e construção do projecto a 2 de Maio de 2007;
- Não se procedeu à realização de audiência dos interessados no procedimento referido à concessão dessa licença;
- O acto de licenciamento do projecto é emitido pelo Município no dia 2 de Maio de 2007;
- Já teve início a instalação e preparação do futuro estaleiro da obra.

Matéria de direito:

1. Foi alegado pelo réu Município de Rãs do Mar, no ponto 26 da sua contestação, que este tribunal seria incompetente porque a sua criação estaria ferida de inconstitucionalidade, uma vez que ao Decreto-Lei nº 325/2003, de 29 de Dezembro faltaria a autorização legislativa necessária em virtude desta matéria supostamente integrar o âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República prevista no art. 165º, nº1 al.ª p) da Constituição. Considera este tribunal que essa alegação não procede visto que o referido Decreto-Lei apenas institui a sede dos Tribunais Administrativos de Círculo e as respectivas áreas de jurisdição, e não a sua competência, esta já previamente atribuída pela Lei nº 13/2003, de 19 de Fevereiro que aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta lei confere, aliás, a necessária habilitação para que se proceda à instituição em concreto dos Tribunais Administrativos de Círculo, nos termos do seu art.39º, nº1. Além do mais, o princípio pro actione, corolário do princípio da tutela jurisdicional efectiva constitucionalmente consagrado no art.268º, nº4, sempre impõe a este tribunal o dever de se pronunciar sobre o mérito dos litígios que lhe são submetidos, não se bastando com questões meramente formais.

2. Outra das questões controvertidas suscitada pela acusação prende-se com o deferimento tácito consagrado no art. 19º do Dercreto-Lei nº 69/2000 de 3 de Maio. Com efeito, é alegada a inconstitucionalidade do mesmo por violação dos princípios da prevenção e do desenvolvimento sustentável que decorreriam da consagração de um direito fundamental ao ambiente no art. 66º da Constituição. Estes princípios vêm tratados na doutrina, e em particular pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, na sua obra “Verde Cor de Direito”, pág.ªs 66 e ss. Segundo este ilustre Prof., “o princípio da prevenção tem como finalidade evitar lesões do meio-ambiente, o que implica capacidade de antecipação de situações potencialmente perigosas”, (...) “de modo a permitir a adopção dos meios mais adequados para afastar a sua verificação ou, pelo menos, minorar as suas consequências”. O princípio do desenvolvimento sustentável, de acordo com a opinião do mesmo Prof., postula “ a fundamentação ecológica das decisões jurídicas de desenvolvimento económico”, impondo, por isso, a não viabilização de projectos públicos ou privados cujos custos ambientes sejam incomportavelmente superiores aos respectivos benefícios económicos. De facto, o deferimento tácito pode tornar-se num instrumento perigoso, gerador de insegurança. Ao não proporcionar uma decisão expressa, todos os interesses que mereciam ser objecto de ponderação não são devidamente considerados, o que poderá originar a violação dos princípios acima referidos. No entanto, com estes princípios outros terão de ser harmonizados porque merecem igual tratamento constitucional, como sejam os princípios da protecção da confiança e do livre exercício da actividade económica. Para a mesma harmonização, é necessário recorrer a um juízo que envolva o próprio princípio da proporcionalidade.
Alega também a acusação que o mecanismo do deferimento tácito contende com o Direito Comunitário na medida em que violaria a Directiva do Conselho n.º85/337/CEE de 27 de Junho de 1985 por não ser conforme ao espírito da mesma, tal como já se pronunciou o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias nos casos Comissão c. Reino da Bélgica (Processo C-230/00) e Comissão c. Alemanha (Processo C-131/88). O nosso art.8º, nº4 da Constituição acolhe efectivamente o princípio do primado do Direito Comunitário e da plena efectividade do mesmo nas ordens jurídicas internas dos Estados-Membros. Por outro lado, a Administração encontra-se sujeita ao princípio da legalidade, que lhe impõe um dever de conformação da sua actuação com a lei. Ao não ter sido declarada a inconstitucionalidade do referido art.19º previamente noutras instâncias, a Administração encontra-se obrigada a aplicar a referida norma. Ainda neste sentido, não é razoável impor ao particular o ónus de esperar ad eternum por uma decisão por parte da Administração.

3. Suscitada a questão da sujeição do referido projecto ao procedimento de licenciamento ambiental previsto e regulado pelo Decreto-Lei nº 194/2000, de 21 de Agosto, dados os elementos fornecidos por ambas as partes, consideramos que o mesmo não se incluiria no Anexo I do citado diploma. Assim, a licença ambiental, não seria exigível neste caso, tendo em conta que os efeitos ambientais da execução do projecto já foram anteriormente ponderados e que a poluição produzida não seria relevante.

4. Alegada a violação do dever de audiência prévia dos interessados previsto nos art.ºs 100º e ss. do Código de Procedimento Administrativo em virtude deste não se ter realizado, cumpre saber se essa audiência prévia seria exigível e, se sim, quais as consequências da sua falta. Importa lembrar que os interessados já se tinham pronunciado em sede de procedimento de AIA, logo a primeira questão perde relevância, também na medida em que com base em dados fornecidos a este tribunal (em especial o relatório da consulta pública previsto nos art.ºs 14º, nº5 e 16º, nº1 do Decreto-Lei nº 69/2000) mais de 50% da população do munícipio de Rãs do Mar esteve presente na consulta pública realizada.
Quanto à segunda questão, será o dever de audiência prévia dos interessados um direito fundamental, ou será um mero ónus a cargo da Administração? A doutrina diverge, pronunciando-se a favor da primeira tese o Prof. Sérvulo Correia. Contra esta posição podemos citar o Prof. Freitas do Amaral. Independentemente da resposta a esta questão, a audiência prévia dos interessados poderá ser sujeita a dispensa nos termos do art.103º, nº2, al.ª a) do Código de Procedimento Administrativo.

Pelos fundamnetos de facto e de direito apresentados, cumpre decidir:

- Quanto à arguição da nulidade do acto de deferimento tácito, consideramos que será este um acto constitutivo de direitos que merece protecção legal, nomeadamente aquela que é conferida pelo art.140º, nº1 al.ª b) do Código de Procedimento Administrativo que impede a sua revogação, em nome do valor da protecção da confiança dos seus destinatários, pelo que estas razões justificam a manutenção do acto. Parece-nos ser, no entanto, inultrapassável a desconformidade evidente do acto de deferimento tácito face ao Direito Comunitário, tal como ele vem sendo interpretado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (veja-se, a este respeito, o ponto 36 da petição inicial). Assim sendo, vemo-nos obrigados a desaplicar a norma constante do art. 19º do Decreto-Lei nº 69/2000 em nome do princípio do primado do Direito Comunitário. Desta forma, as licenças de urbanização e construção são nulas por violação do preceito constante do art.20º, nº3 do referido diploma com fundamento na preterição do nº1 do mesmo art.º, cuja 2ª parte também este tribunal considera incompatível com as exigências do Direito Comunitário. Seguimos, assim, a orientação propugnada pelo Prof. Paulo Otero, na sua obra Legalidade e Administração Pública – O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, que considera que quando a Administração se confronta com um acto interno desconforme com o Direito Comunitário, esta deve resolver este conflito normativo de acordo com o critério hierárquico, ou seja, dando prevalência ao Direito Comunitário.
Nada do que foi referido anteriormente inviabiliza uma nova apreciação do projecto em casua fazendo uma correcta ponderação entre os benefícios económicos e os custos ambientais que conduza a uma decisão expressa por parte da autoridade competente que, neste caso concreto, será o MAOTDR.

-Relativamente à questão da violação do dever de audiência prévia dos interessados, este tribunal considera que se trata, efectivamente, de um direito fundamental, tendo em conta que se trata de um mecanismo criado para acautelar os interesses dos particulares face à Administração. No entanto, a sua função já foi cumprida em sede de procedimento de AIA onde se realizou uma consulta pública, pelo que se justifica a dispensa de audiência prévia com fundamento no art.103º, nº2, al.ª a) do Código de Procedimento Administrativo.

-Como último ponto, é importante este tribunal pronunciar-se relativamente ao pedido de indemnização formulado pela acusação. O mecanismo de indemnização previsto vai contra a estrutura de uma acção popular, não fazendo sentido que uma parte na qualidade de actor popular venha a ser ressarcida por eventuais danos ao ambiente, devendo a mesma ser utilizada para prosseguir fins altruístas e não interesses individuais e subjectivos. Além do mais, não se deu como provada a ocorrência de danos ambientais geradores desta responsabilidade (prevista na Lei nº 83/95, de 31 de Agosto), nomeadamente a destruição das dunas ou de espécies de fauna e flora locais.

Em conformidade, decide este tribunal:
a) declarar a nulidade do acto de deferimento tácito do réu MAOTDR;
b) declarar a nulidade dos actos de licença de urbanização e construção;
c) negar provimento ao pedido de pagamento de uma indemnização por danos difusos ambientais.


Ricardo Ribeiro
Rita Silveira
Susana Barbosa

1 comentário:

Amarela disse...

Transcrevo o meu comentário a propósito das conclusões do Ministério Público:

"Em relação à questão da indemnização gostaria de deixar algumas notas.

A inclusão deste pedido tinha precisamente o objectivo de trazer à colação a discussão sobre o art. 22º/2 da LPPAP. E levanta, pelo menos, duas questões:
1. qual a natureza desta indemnização?
2. para quem deve ir a indemnização?

Em relação à primeira questão, como foi sublinhado pela Diana, a lei não nos traz respostas conclusivas. Mas onde o legislador não foi claro tem o intérprete de trazer alguma luz! E concordo com o Professor Vasco Pereira da Silva quando defende que parece estarmos perante uma concretização de punitive damages, à maneira dos sistemas anglo-saxónicos.
(...)
Em relação à segunda questão proposta, ela de facto não foi abordada na simulação. O facto é que a indemnização está prevista constitucionalmente e, mesmo que discordemos, há que lhe atribuir efeito útil. Tendo em conta a função da acção popular, penso que faria sentido consignar a indemnização à melhoria de condições ambientais no Município de Vale das Rãs.

Contudo, tenho de concordar com a decisão do colectivo que explicitou que não tinham sido provados os danos alegados e por isso negava provimento ao pedido."

Sendo certo que a leitura da Lei de Acção Popular aparenta uma contradição entre a sua estrutura e a função típica da indemnização, não pode o tribunal recusar-se a atribuí-la com esse fundamento, porque isso seria ignorar a existência da norma em causa.
Pelo contrário, haveria que tentar apreender e aproveitar o seu conteúdo.