sábado, 7 de abril de 2007

A juridicidade dos princípios jus-ambientais

Pedia-vos agora que comentassem a seguinte afirmação:

“Por um lado, a deriva formulativa de alguns alegados princípios de Direito do Ambiente – como o desenvolvimento sustentado ou a precaução – retira-lhes a natureza principiológica, quer circunscrevendo-os a uma aplicação casuística (nos termos de disposições concretas), quer remetendo-os a “sound bites” de sabor de considerações de oportunidade política. Por outro lado, o carácter ético de certas máximas despe-as de significado jurídico”.
Carla Amado Gomes, "Princípios jurídicos ambientais e protecção da floresta: considerações assumidamente vagas" in Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 9, 2006, pp. 148-149.

4 comentários:

Nicole disse...

Pela afirmação enunciada uma coisa é certa: sem dúvida, todas as opiniões são possíveis, e todos têm direito a ter a sua. E sem dúvida, a Professora Carla Amado Gomes tem uma opinião… muito sua! Não que a mesma não seja partilhada, por certo, por outros autores ou meros pensadores de Direito do Ambiente. Mas porque a mim, como mais uma pensadora desse ramo do Direito, as considerações levadas a cabo pela nesta afirmação são muito contrárias à perspectiva que tomo não só do Direito do Ambiente enquanto ramo do Direito, mas de todos os ramos de Direito que ao final de cinco anos de curso tive oportunidade de estudar.
Assim sendo, considero que todos os ramos do Direito, do qual o Direito do Ambiente não é excepção, se afirmam, se distinguem e se justificam pelos princípios que lhes estão subjacentes. Se as normas conseguidas por tais ramos do Direito são as que, em princípio, vinculam os particulares, a origem, a justificação, o conteúdo e a opção axiológica levada a cabo por essa norma reporta-se a um ou vários princípios que enformam o Direito em que ela se insere.
Pelo exposto não posso concordar com a Professora quando afirma que o “desenvolvimento sustentado” resulta de “considerações de opção política”, e este é apenas um exemplo. Ainda que o conceito em si possa resultar nalguma indeterminabilidade prática (pois possivelmente cada Executivo encontrará a sua “fórmula perfeita” de desenvolvimento sustentado), com certeza que existem critérios de orientação e uma zona “não cinzenta” de aplicação do conceito.
Ou seja, com certeza que dentro do conceito de desenvolvimento sustentado não caberá uma proliferalização de zonas industriais no Parque Nacional do Gerês. Ou ainda mais, com referência ao princípio da prevenção (e parafraseando George Bush!), que a solução para a prevenção dos incêndios não será o abate de todas as florestas e matos nacionais… Ainda que ambas as opções consideradas, na perspectiva da Professora, pudessem ser da maior utilidade ao Homem em função de outros seus direitos subjectivos. Como cita o Professor Vasco Pereira da Silva no seu manual (“Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente”), “o princípio constitucional do desenvolvimento sustentável obriga assim à “fundamentação ecológica” das decisões jurídicas de desenvolvimento económico, estabelecendo a necessidade de ponderar tanto os benefícios de natureza económica como os prejuízos de natureza ecológica de uma determinada medida, afastando por inconstitucionalidade a tomada de decisões insuportavelmente gravosas para o ambiente.” Refere-se o Professor à norma do artigo 66º, n.º 2 do texto constitucional.
Por último, não são todos os princípios (e até normas) constitucionais de conteúdo marcadamente ético? A ética estuda a natureza do que é considerado adequado e moralmente correcto, sendo esse juízo de apreciação referente à conduta humana. Ora, a meu ver, todos os princípios que regem o nosso sistema jurídico são marcadamente éticos. A jurisdicidade não lhes dá valor fundamental, mas tão só a coercibilidade necessária ao eficaz funcionamento do sistema jurídico.

Pedro Reis disse...

Independentemente de concordar ou não com a opinião exposta para comentário, penso compreender o que a Autora quer significar com essa consideração no tocante à juridicidade (ou falta dela) de princípios tão comuns no diálogo empírico como seja o do desenvolvimento sustentável.
Nesta passagem estão presentes questões profundas e que necessitariam de grandes considerações acerca de “Ética” e “Direito” para poderem ser tomadas no seu todo, como não é esse o objectivo da participação ficarei apenas por algumas reflexões, desejavelmente não totalmente “despidas de significado jurídico”.
O esquema clássico era aquele que fazia derivar da noção geral de Ethica a Moral e o Direito como disciplinas autónomas.
Creio que a forma mais correcta de colocar a questão a partir desse ponto será a seguinte: Quer tenhamos uma visão mais ou menos Kantiana do que devem ser as relações entre Direito e Ética em geral (compreendendo naturalmente a afinidade com a Moral) é inegável que há pontos de intercepção entre os vectores teóricos de ambas as disciplinas, cujos exemplos seriam infindáveis (ambas postulam a proibição de subtrair coisas alheias, uma –Direito- por considerações de justiça de “dar a cada um o seu” e violações de direitos como a propriedade e outra –Ética- por razões de impossibilidade de universalização da conduta delinquente e sua falta de lógica como seja a atitude do ladrão que nega implicitamente o direito de propriedade ao furtar mas depois o pretende afirmar defendendo o que furtou de outro furto, os exemplos multiplicam-se..).
Tendo esta observação como base, o que a Autora avança é um juízo de valor sobre o substrato jurídico de princípios que o Direito partilha com a Ética, numa espécie de “contaminação” do Jurídico pelo Ético.
Creio ser inevitável a sobreposição de ambos os ramos do conhecimento em questão em determinadas máximas de comportamento e de conduta lícita jurídicamente, mas ao contrário da Autora, penso que isso é teoricamente benéfico na medida em que a disseminação de condutas juridicamente aceitáveis não pode ser senão desejável.
No entanto, e como disse no início, acho compreensível as reticências que a Autora coloca à utilização de princípios cuja teorização se encontra no Direito e que ao integrar a gíria de campanha política, de alguma forma se degradam no seu valor jurídico (em causa está também a instrumentalização do Direito pela Política para prosseguir os seus próprios fins, naturalmente estranhos à “pureza distributiva” e transparente do Direito, assunto que muito tempo tomaria com o risco do afastamento do tema principal). Porém, apesar de compreensível penso tratar-se de uma consideração “intuitiva”, proveniente da sensibilidade social da Autora, porque na pureza da lógica, o valor ético de princípios jurídicos seria um acréscimo de carga axiológica e não um “embaraço” ao discurso jurídico.
Não obstante, penso que é no trabalho dogmático e doutrinário dos princípios que devemos buscar a sua “blindagem” contra a vulgarização vocabular que os descaracteriza, e no caso do Direito do Ambiente apesar de tudo isso tem sido conseguido, a meu ver satisfatoriamente para o pouco tempo que tem este ramo do Direito.
Agora no que diz respeito à presença dos princípios em “disposições concretas”, o que a Autora considera como “residual” ou de menor importância, causa-me alguma perplexidade na medida em que tenho por convicção que esse é um dos objectivos últimos, que a norma concreta seja fiel ao princípio que lhe está subjacente.
Uma das funções dos princípios jurídicos é precisamente a sindicância da teleologia das normas, e como se sabe, em Direito do Ambiente é ainda mais do que isso por se concentrarem na decisão de alcance público e respectiva ponderação de interesses.
Para além de serem instrumentais na fundamentação da aplicação de normas (precisamente pela relação que mantêm com elas) e de fundamentação de decisões.
Apesar de não considerar que todos os princípios ético-morais sejam sobreponíveis em face de princípios jurídicos, cujo “perfeccionismo distributivo” não permite mais do que isso mesmo (ultrapassando o já “gasto” critério da coercibilidade como critério de distinção entre ambos) penso que a determinação de conceitos originariamente indeterminados tem como limite apenas a capacidade de discernimento jurídico, não sendo o casuísmo “ausência de regras”, não espaço livre de Direito mas espaço livre para o Direito, campo por excelência para o suporte instrumental dos princípios jurídicos.
Assim, é no esforço do aprofundamento interpretativo, de distinção em distinção, no labor doutrinário, que se encontra a juridicidade que procuramos para estes princípios, não vendo utilidade em considerá-los despojados de valor jurídico pela sua apropriação política.
Além de que princípios como o desenvolvimento sustentável e a prevenção são complementos de versatilidade e adequação para normas que estagnam no tempo e no quadro de uma realidade ecológica que se altera sem padrão rítmico.
Exemplo disto está precisamente no surgimento de princípios como o da precaução e respectiva discussão em torno da sua autonomia jurídica.
Admitindo que princípios como estes são de “fácil pronúncia” em discursos de cariz político e que se prestam a servir de base a “oportunidade política”, não vejo melhor alternativa que não a juridificação pelo trabalho em torno dos mesmos e pela sua tomada em conta na produção legislativa ( o que muito papel pouparia por vezes, salvaguardando o ambiente e a coerência jurídica no mesmo acto..).

eduardo alves disse...

"Hão-de perguntar-me se sou príncipe ou legislador para escrever sobre política. A minha resposta é que não é por isso que escrevo sobre política. Se fosse príncipe ou legislador, não perderia tempo a dizer o que deve fazer-se; fazia ou calava-me."
Rousseau, O contrato social

O princípio da precaução tem sido distinguido do princípio da prevenção por não exigir certeza científica, porem como bem se sabe a certeza científica não deve ser encarada como um dogma, acerca da lesividade para o ambiente da conduta em causa. Esta concepção pode contender com os direitos fundamentais de liberdade de iniciativa económica e direito de propriedade privada. As condutas dos particulares seriam restringidas pela administração tendo por base o direito ao ambiente, sendo este constitucionalmente relevante para justificar essas restrições. Porém estas restrições feitas em nome do ambiente não podem conferir à administração uma livre margem de discricionariedade pois não é compatível com a tutela destes direitos fundamentais, análogos a direitos, liberdades e garantias. As restrições só podem existir quando comprovadamente seja necessário proteger o direito ao ambiente, decorrência do artigo 18 nº2 da CRP. Esta concepção poderia inclusive vir a ser contraproducente uma vez que iria minar o crédito nas actuações em defesa do ambiente; as pessoas tendem a não ver com bons olhos restrições ao direito de propriedade tendo por base vagas alusões de defesa potencial do ambiente. Como escreveu Maquiavel: “…acima de tudo convém que se (o príncipe) abstenha de tocar nos bens dos outros, porque os homens esquecem mais depressa a morte do seu pai do que a perda do seu património.”, apesar de forma hiperbolizada Maquiavel descreveu de forma realista e amoral, como também a lei deve ser, a verdadeira natureza humana. Já é difícil proteger o ambiente quando comprovadamente se sabe que a actividade é incomportável ambientalmente quanto mais quando nem se tem a certeza que se protege algo.
O Princípio da precaução tem outra consagração jurídica, a inversão do ónus da prova em matéria de defesa do ambiente, teria de ser o particular a provar que a sua conduta não é lesiva para o ambiente, a prova de um facto negativo é como se sabe praticamente impossível, a chamada diabólica probatio. Refere a professora Carla Amado Gomes, acerca da inversão o ónus da prova, que: “….não é legítimo exigir a prova da inocuidade de uma intervenção quando a Ciência não é sequer capaz de comprovar a existência de um risco.” De forma restrita penso que seja útil esta inversão do ónus da prova, não que se prove que a conduta não é lesiva para o ambiente mas que se façam todos os esforços para demonstrar que, dentro das limitações científicas, nada indica que esta seja lesiva para o ambiente, apesar de esta já ser uma manifestação do princípio da prevenção. O princípio da precaução não deve ser afastado por completo, temos de ter em mente que existem lesões ao ambiente que não são evitáveis ou reversíveis esperando-se pela certeza cientifica, devemos assim tentar limitar, nestes casos, a actividade que se visa prosseguir de modo a que a qualquer momento se possa reverter a situação; em certos casos admito que perante a importância do valor ambiental em causa se exclua a actividade humana mesmo não existindo certeza científica, mas apenas em casos pontuais, de forma a não se abrir inadvertidamente uma janela onde se quer fechar uma porta. Voltando ao florentino já este dizia que: “ Contudo, para que o nosso livre arbítrio não se extinga, parece-me possível que a fortuna seja senhora de metade das nossas obras, mas que nos deixe governar, mais ou menos, a outra metade. [.....] Assim sucede com a fortuna, que demonstra a sua força nos lugares onde sabe não existirem diques nem muralhas e fazerem-lhe frente.”

Eduardo Alves

Ália Amadá disse...

A "deriva formulativa" dos principos constitucionais em matéria de ambiente pode dificultar, e não obstar, à sua juridicidade.

Como refere o Prof. Vasco Pereira da Silva a "Constituição do Ambiente" obriga, designadamente, a que: o legislador respeite os principios constitucionais relativos ao ambiente, a Administração esteja vinculada pelos referidos principios e os tribunais ao julgarem litigios concretizem os principios ambientais.

Assim conclui-se que apesar da "infância atribulada" do Direito do Ambiente os seus principios obrigam as mais diversas entidades publicas e, portanto, não são os principios ambientais utilizados ao "sabor de oportunidade politicas" nem são despidos de significado.