quarta-feira, 13 de junho de 2007

Sentença Subturma 12

Sentença do Tribunal Judicial
de Rãs do Mar
de 15.5.2007

I - Relatório:

AA.: Gonçalo Ildefonso, José Manuel Silva Calhau e Vânia Guerreiro; RR.: Joana Isabel da Ilha, Manuel Joaquim dos Reis Sapo.

Na presente acção os AA., invocam que a ré Joana da Ilha tem a pretensão de construir um empreendimento turístico em Vale de Rãs, pretendendo realizar todas as obras e medidas necessárias para fazer surgir uma ilha, a uma distância de 5 Km ao largo da praia que já serve a urbanização do mesmo nome, para construir aí 5 hotéis (sendo um deles subterrâneo no espaço que medeia a praia e a ilha), 2 campos de golfe e um aldeamento turístico de luxo.

A ré, Joana da Ilha, apresentou ao Ministro da Economia os documentos para aprovação do projecto denominado “Ilha dos Seus Sonhos”, constando dos mesmos, para além da justificação do interesse turístico e económico do empreendimento, estudos e pareceres técnicos que sustentam tanto a ausência de riscos relativos à construção do empreendimento, como as suas vantagens em termos ambientais, dado que a referida ilha constituiria um obstáculo para o avanço das águas do mar, protegendo assim a orla costeira da região. Todavia, vêm os AA. contestar que o Ministro da Economia não era competente para aprovar o projecto, pois o RJAIA refere que a competência cabe ao Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Regional.

Os AA. concluem, ainda, que do projecto apresentado não constam medidas de eliminação dos resíduos provenientes das unidades hoteleiras, nem medidas eficientes de utilização de energia.

Decorridas as sucessivas fases de procedimento de avaliação de impacto ambiental (D.L. nº 69/2000, de 3 de Maio), a comissão de avaliação competente elaborou um parecer desfavorável à autorização do projecto (artigo 16º do referido diploma).
Em seguida, verificou-se o deferimento tácito do pedido dada a ausência de decisão do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional dentro do prazo legalmente fixado (artigo 19º do D.L. n.º 69/2000). Consideram os AA. que o instituto do deferimento tácito constante do artigo 19º do D.L. n.º 69/2000, de 3 de Maio viola a Directiva nº 2003/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio.

Foi iniciado, posteriormente, o procedimento de licenciamento ambiental do empreendimento, nos termos do D.L. n.º 194/2000, de 21 de Agosto, que continua em curso.

Mais, sustentam que a ré Joana da Ilha subornou o Presidente da Câmara para que este deferisse os pedidos de urbanização e de construção dos equipamentos da “Ilha dos Seus Sonhos” à Câmara Municipal de Rãs do Mar. Efectivamente, estes vieram a ser deferidos.

Por último, uma vez obtidas as referidas autorizações camarárias, a ré Joana da Ilha resolve dar início aos trabalhos destinados à concretização do projecto.

Os AA., por fim, ao abrigo e com a legitimidade que lhes é conferida pelos arts. 52º e 66º da CRP, pela Lei de Bases do Ambiente (Lei nº. 11/87 de 7 de Abril) e pelo art. 2º da Lei 83/95 de 31 de Agosto (Direito de Participação Procedimental e de Acção Popular), nos termos desta lei em conjugação com a restante legislação atrás citada, com referência ao projecto de construção de um empreendimento turístico em Vale das Rãs, vêm propor Acção Administrativa Especial cumulando (nos termos dos art. 4.º e 47.º CPTA) os seguintes pedidos:

Declaração de nulidade das autorizações camarárias (art. 46.º n.º 2 alínea a) e 50.º e seguintes CPTA);

Condenação do Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território à emissão da Decisão de Impacte Ambiental (art. 46.º n.º 2 alínea b) e 66.º e seguintes do CPTA);

Impugnação da norma do art. 19.º do Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental – Decreto-Lei 69/2000, de 3 de Maio com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 197/2005, de 8 de Novembro, adiante RJAIA (art. 46.º n.º 2 alínea c) e 72.º e seguintes do CPTA).

Os RR. contestaram os referidos pedidos, impugnando a totalidade da factualidade alegada pelos AA., concluindo pela improcedência da acção. Os RR. sustentam que solicitaram vários pareceres antes de iniciar o licenciamento do projecto na Câmara Municipal de Rãs do Mar, tendo sido um desses pareceres pedido ao Ministério da Economia e da Inovação (MEI), onde, tal como nas outras entidades públicas requeridas, foram entregues todos os projectos necessários ao procedimento.
A Direcção-Geral do Turismo (DGT) emitiu parecer favorável sobre o projecto de arquitectura, bem como declarou o interesse turístico do empreendimento.

De todos os pareces pedidos e emitidos, apenas o da Comissão de Avaliação de Impacto Ambiental, que não é vinculativo, se pronunciou desfavoravelmente.

O procedimento de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) decorreu no Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (MAOTDR) e não no MEI.

A proposta de parecer da Comissão de Avaliação de Impacto Ambiental foi aprovada por 4 votos a favor e 3 votos contra dos representantes da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional e do Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade I. P.., que lavraram votos de vencido a favor da qualidade do Estudo de Avaliação de
Impacto Ambiental, como consta de documento em anexo.

Joana da Ilha não subornou o Presidente da Câmara Municipal de Rãs do Mar (PCM). O PCM cumpriu todos os trâmites legais do procedimento de licença de empreendimento em causa, incluindo o envio do projecto para determinar da eventual necessidade de emissão de licença ambiental.

Embora consciente da importância social, económica e cultural do projecto, o PCM defere o pedido de construção do empreendimento por motivos de urgência, o que permitiu que se iniciassem imediatamente as obras preliminares de surgimento da ilha.

Ao abrigo e com a legitimidade que lhes é conferida pelos arts.83º do CPTA e 486º e ss. do CPC, com referência ao projecto de construção de um empreendimento turístico em Vale das Rãs, vêm contestar os pedidos de:

Declaração de nulidade das autorizações camarárias (art. 46.º n.º 2 alínea a) e 50.º e seguintes CPTA);

Condenação do Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território à emissão da Decisão de Impacte Ambiental (art. 46.º n.º 2 alínea b) e 66.º e seguintes do CPTA);

Impugnação da norma do art. 19.º do Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental – Decreto-Lei 69/2000, de 3 de Maio com as alterações

II – FUNDAMENTAÇÃO:

1 - FACTOS PROVADOS.

1.Joana da Ilha pretende construir uma ilha a 5km da praia que serve a urbanização de Vale das Rãs, na qual irão ser criados 5 hotéis (sendo um deles subterrâneo, a situar entre a actual praia e a futura ilha), 2 campos de golfe e um aldeamento turístico de luxo.

2. Foram apresentados ao Ministério da Economia para aprovação do projecto da “Ilha dos seus Sonhos” vários documentos, dos quais constavam estudos e pareceres técnicos que justificavam o interesse turístico e económico do empreendimento;

3. O EIA foi apresentado à Câmara Municipal de Vale das Rãs;

4. Após as diversas fases do procedimento de avaliação do impacto ambiental, a comissão de avaliação competente elaborou um parecer desfavorável à autorização;

5.A DIA favorável foi proferida pelo Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território;

6.O projecto em causa detêm um elevado grau de minúcia quanto a preocupações ambientais e ecológicas. Recorre às mais elevadas tecnologias e pode vir a resolver o problema da erosão costeira Algarvia.

7.Foram cumpridos todos os trâmites legais do procedimento de licença do empreendimento em causa, incluíndo o envio do projecto para determinar a eventual necessidade de emissão de licença ambiental;

8.Durante o procedimento de Licenciamento Ambiental, a ré Joana da Ilha apresentou os pedidos de urbanização e construção da “Ilha dos Seus Sonhos” à Câmara Municipal de Rãs do Mar;

9.O Presidente da Câmara de Rãs do Mar defere o pedido;

10.Joana da Ilha dá início aos trabalhos destinados à realização do projecto
2 - MATÉRIA DE DIREITO:

1.No ponto 17º do articulado da petição inicial apresentada neste Tribunal, os autores alegam que a norma que fundamenta a eventual validade do acto final de licenciamento, seria contrária a Directiva nº85/337/CEE. A norma em causa, o artigo 19º do Decreto-Lei 69/2000, prevê que a ausência de pronúncia por parte da Administração (mais concretamente da entidade licenciadora), dê lugar a formação de um acto tácito de conteúdo positivo favorável ao requerente, isto é, dá lugar a um deferimento tácito. Tal alegação dos autores, tem ainda respaldo na jurisprudência comunitária, com efeito, o Tribunal de Justiça das Comunidades num acórdão de 14 de Junho de 2001, referente ao processo C-230/00, veio a condenar o Reino da Bélgica por incumprimento das obrigações imposta pela directiva atrás citada, por este Estado, tal como Portugal, prever um sistema de deferimento tácito (embora aquele só previsse tal mecanismo em segunda instância, pois em primeira instância, o silêncio da autoridade administrativa equivaleria a um indeferimento tácito) no procedimento de avaliação do impacto ambiental de projectos eventualmente agressivos ao ambiente. Este Tribunal, considerou que o disposto no artigo 2º, bem como no artigo 8º da directiva nº85/337/CEE, impunham às autoridades nacionais a avaliação prévia e efectiva dos impactos ambientais de determinados projectos, não sendo assim admissível autorizações ou licenciamentos fundados em actos tácitos ou ficcionados (no caso um deferimento tácito). Ora, assim sendo, e adoptando o entendimento do Tribunal de Justiça das Comunidades, há que concluir que o artigo 19º do D.L. 69/2000, viola o preceituado na directiva em questão. Considerando, que já se ultrapassou o prazo de transposição da referida directiva, que a mesma é suficientemente clara e precisa, se apresenta como incondicional e que para a realização dos seus efeitos não necessita de qualquer disposição nacional que a complete (tendo em conta que no caso em análise já existe toda uma regulamentação nacional, sendo que esta só se apresenta como contrária a directiva em questão, por ter previsto a existência de um mecanismo de “ fraude à directiva”- art.19º do D.L. 69/2000), há que concluir que à mesma é reconhecido efeito directo vigorando, assim, directamente na ordem jurídica portuguesa sem necessidade de qualquer transposição formal. Poder-se-ia questionar, se no caso sub judice não se estaria a conferir à referida directiva, ainda que de forma indirecta, efeito directo horizontal, já que temos um particular a impugnar um acto administrativo (que como é óbvio resulta de uma manifestação do Estado, destinatário em primeira linha das obrigações comunitárias) a favor de um outro particular, que tem expectativas tuteláveis, sendo que, ao contrário dos Estados-membro, não lhe é imposto nenhum dever (absurdo) de transposição. Ora, a regra por várias vezes afirma pelo Tribunal de Justiça, é de que não se admite o efeito directo horizontal (cfr. caso Marshall, ou ainda Faccini Dori), contudo este mesmo tribunal admite a invocação de uma directiva contra um acto administrativo a favor de terceiro (aceitando, assim uma espécie de efeito directo horizontal indirecto), foi assim decidido, nomeadamente num acórdão de 12.11.96, referente ao processo C-201/94 (caso Smith and Nephew). Considerando, o atrás referido, cabe concluir que o artigo 19º do Decreto-Lei nº 69/2000 é inválido, não sendo assim de se aceitar a possibilidade de existir no âmbito do procedimento de avaliação de impacto ambiental uma decisão de sentido favorável a pretensão do requerente sem que haja uma efectiva ponderação dos efeitos ambientais de um determinado projecto. Assim, considerando que não houve um deferimento tácito (por se considerar que a norma que o prevê inválida pelas razões atrás aduzidas), falta um pressuposto essencial ao acto final de licenciamento, pois se não houver uma decisão favorável ou condicionalmente favorável, serão nulos os actos que dela dependem, no caso o licenciamento final (artigo 20 nº1 enº3 do Decreto-lei nº69/2000).

Os réus na contestação consideraram que no caso do Decreto-Lei nº 69/2000 não haveria desconformidade com a supra citada directiva, pois, para que houvesse o deferimento tácito o particular teria sempre que submeter à Administração um estudo de impacto ambiental (EIA) e que aquela teria sempre, no momento do licenciamento (quando houvera um deferimento tácito em sede de AIA), que ter em “consideração o EIA apresentado pelo proponente” (art.19 nº 5). Contudo, tal interpretação, não se apresenta conforme à Directiva nº85/337/CEE, isto tendo em conta que o autor do EIA é na verdade o próprio requerente da avaliação de impacto ambiental, o que não garante imparcialidade e objectividade na consideração das reais consequências do projecto em causa, mais, mesmo que, aceitado a boa fé e isenção do particular aquando da feitura do EIA, corre-se muitas vezes o risco da entidade licenciadora final não estar preparada para analisar do ponto de vista técnico o próprio EIA apresentado. A Directiva nº85/337/CEE impõe que a análise dos custos ambientais seja feita efectivamente e que essa mesma análise seja o mais possível independente, ora assim sendo, não se poderá aceitar que um estudo apresentado pelo próprio requerente sirva, só por si, de base à decisão final.

Se à luz do direito da União e das Comunidades Europeias é assim, às mesmas conclusões chegar-se-iam, analisando o artigo 19º do Decreto-Lei nº69/2000 do prisma do Direito constitucional. Com efeito o princípio, constitucionalmente consagrado, da prevenção (art.º 66º nº2 CRP), manda que se considere os possíveis perigos, antecipando possíveis lesões ambientais, permitido assim acautelar eventuais danos. Ora a consagração de uma declaração de impacte ambiental favorável por mero decurso do tempo (através de um deferimento tácito), não permite a realização de um juízo de prognose das consequências ecológicas de um determinado projecto o que não é conciliável com o normativo constitucional. Para além, do referido princípio da prevenção, estar-se-á ainda a comprometer, o também constitucionalmente consagrado (art.º 66 nº2 CRP), princípio do desenvolvimento sustentável, por não se considerar a dimensão ambiental da decisão final permissiva (tese esta defendida, nomeadamente, pelo Prof. Vasco Pereira da Silva). Assim, também por esta via, seria de considerar que existência de uma decisão tácita favorável ao requerente, sem uma efectiva ponderação dos custos ambientais seria inconstitucional (no caso afectando a validade do art.º 19º do Decreto-lei 69/200). Consideração essa, que no caso sub judice, levaria a considerar que o acto de licenciamento seria nulo por violação do artigo 20º nº1 e nº3 do D.L. 69/2000, pois faltaria uma declaração de impacte ambiental favorável ou condicionalmente favorável (que, como já foi referido anteriormente, este Tribunal recusa que se possa formar por mero deferimento tácito), nos termos do artigo 17º do Decreto-Lei 69/2000.

2.Caso considerássemos os projectos em causa de forma isolada, concluiríamos que os mesmos não estariam sujeitos ao procedimento de licença ambiental previsto no DL 194/2000. De facto é o que resulta da interpretação "a contrario"do disposto no Anexo I daquele diploma.

Não obstante, optámos por uma perspectiva global que pondera os efeitos ambientais não apenas dos empreendimentos turísticos em si, mas também as estações de tratamento de resíduos previstas. Assim sendo e tendo em conta a magnitude a curto e a longo prazo dos projectos, concluímos que, por remissão do disposto nos artigos 1º e 2º,al f) do DL 194/2000, os mesmos se enquadram nas actividades consignadas no Anexo I daquele diploma, "maxime" no nº 5.2.

Estando os projectos sujeitos ao procedimento licença ambiental cabe afirmar que a ré assumia, no seu âmbito, as vestes de "operador" para efeitos do disposto no artigo 2º/1 al. f) do DL 194/2000.

3. Tendo concluído que os projectos estavam sujeitos a licença ambiental cuja emissão compete à "APA" (vide artigo 5º do DL 194/2000 e sucessivas alterações), cabe agora indagar se é legalmente admissível a emanação de uma licença de construção camarária ao arrepio daquele acto prévio.

No plano formal, uma vez que o réu (Manuel Sapo, na qualidade de Presidente da Câmara) agiu no exercício de poderes efectivamente delegados, concluímos que era o órgão competente para a prática do acto (vide artigos 5º/1 do DL 555/99 e 65º/1da Lei 169/99).

No tocante ao plano material, cabe tecer algumas considerações: em primeiro lugar, cumpre trazer à colação o disposto no artigo 68º, al. c) do DL 555/99 nos termos do qual o órgão decisor deve atentar à pronúncia da entidade auxiliar tanto originaria como supervenientemente.

Na situação "sub judicio" o Presidente da Câmara decidiu ainda que a "APA" o não tivesse feito, sendo este um dos casos que a lei fulmina com a nulidade.
Por outro lado, decerto que tal decisão contenderia com direitos e interesses legalmente protegidos, ou seja, seria lesiva dos mesmos. Desta feita, em homenagem ao princípio da participação dos interessados previsto nos artigos 267º/1 da Constituição e 8º do Código do Procedimento Administrativo, doravante "CPA") deveria ter sido cumprido o dever de audiência prévia plasmado nos artigos 100º e seguintes do CPA.
A doutrina diverge no que concerne às consequências decorrentes de inobservância daqueles preceitos sendo sensíveis duas grandes correntes de opinião: o segmento maioritário (vg, Freitas do Amaral, Pedro Machete, Paulo Otero) propugna que a sanção deverá a anulabilidade do acto nos termos gerais (vide artigos 135º e seguintes do CPA); por seu turno Autores como Jorge Mirada, Sérvulo Correia e Vasco Pereira da Silva entendem que o acto deverá ser nulo com o fundamento de que se estaria perante um direito subjectivo público de participação procedimental o qual assume uma natureza análoga de direitos, liberdades e garantias à luz do artigo 17º da Constituição. Ademais o Professor Vasco Pereira da Silva defende a este propósito que a falta de audiência dos interessados não apenas inquina o procedimento, como consubstância, em última análise, uma decisão parcial dado que não pondera todos os aspectos relevantes. Como se sabe à violação do princípio da imparcialidade (vide artigos 266º/2 da Constituição e 6º do CPA) corresponde o vício de violação de lei.
Em suma, embora Presidente da Câmara fosse competente, os actos por si praticados seriam inválidos.

Poder-se-ia obviar a esta situação pelo recurso ao instituto do estado de necessidade o qual, a verificar-se, assumir-se-ia como uma autêntica válvula de escape. Com efeito a lei consagra "expressis verbis" a possibilidade de, perante uma situação de urgência, prescindir da realização da audiência dos interessados (vide artigo 103º/1, al. a) do CPA).

Sobre esta questão cabe afirmar o seguinte: em primeiro lugar, ainda que o elemento literal ( vide artigo 3º/2 do CPA) pareça restringir a operatividade figura às normas que animam o CPA, os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e Freitas do Amaral entendem que deve proceder-se a uma interpretação extensiva do preceito de tal maneira que o mesmo se leia "(...) como legitimando qualquer actuação administrativa em estado de necessidade, mesmo que os preceitos legais tenham a sua sede fora do código"); em segundo lugar, segundo o Professor Freitas do Amaral são requisitos materiais do estado de necessidade, a urgência, a natureza imperiosa do interesse público a defender e, por último, a excepcionalidade da situação. Não obstante a primordialidade dos interesses públicos a prosseguir, no caso, o ambiente e a qualidade de vida da população (vide artigo 66º/1 e 2, al. h) da Constituição), dos estudos não deflui a comprovação dos restantes pressupostos.

Por outra banda, resulta claramente do artigo 3º/2 do CPA que o recurso ao estado de necessidade é balizado pelo princípio da proporcionalidade. Assim sendo, podemos afirmar que embora a escolha da medida fosse adequada e até equilibrada, não se afiguraria, porém, necessária por duas razões: em primeiro lugar, é muito duvidoso que a construção dos empreendimentos fosse o único meio possível de evitar o avanço das águas (poder-se-ia ter optado, por exemplo, pela edificação de um molhe); em segundo lugar, e, complementarmente, não se afigura como a menos lesiva.
Do exposto resulta que não estavam verificados os pressupostos do estado de necessidade pelo que se reafirma a natureza inválida dos actos praticados pelo réu.

4.O Presidente da Câmara licenciou a realização de operações urbanísticas relativas a uma instalação sujeita a licença ambiental (vide artigos 1º, 2º al. f) e nº 5.2 do Anexo I do DL 194/2000) sem que tal fosse notificado à entidade coordenadora. A falta deste trâmite gera a nulidade do acto por força do disposto nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 22º idem.

III – DECISÃO

Nos termos e fundamentos expostos julga-se procedente a acção proposta por Gonçalo Ildefonso, José Manuel Calhau e Vânia Guerreiro, e, em consequência decide-se:

A suspensão das obras de construção da “Ilha dos seus sonhos” .

Custas a pagar na totalidade pelos réus.

1 comentário:

Anónimo disse...

Em primeiro lugar, gostava de felicitar os meus colegas na simulação.
Em segundo, quero desde já salientar a qualidade da decisão dos juízes, embora não concorde com ela.
Em terceiro lugar, venho contestar a decisão com base nos seguintes argumentos:

i) Os juízes limitaram-se a transpor a decisão do TJ, de condenação da Bélgica por incumprimento do Direito da União, por terem transposto mal uma directiva, para um caso parecido em apreço em Portugal. Ora, embora em Portugal haja também um regime de indeferimento tácito, o regime português é diferente do belga, pois este não dispõe de “cláusulas de salvaguarda” impostas à entidade licenciadora (art. 19/5º RJAIA) como em Portugal. Sem esta e outras comparações de regimes, não é possível perceber se a mesma ratio decidendi se justifica aplicar aos dois casos, ou seja, se eles são iguais ou se têm mais semelhanças do que diferenças entre si – não se pode esquecer que a decisão do TJ no caso belga tem por base o regime belga. Além disso, os juízes não fazem a sua interpretação da Directiva em apreço, apenas seguindo o que o TJ diz para outro caso;

ii) Os juízes não se pronunciam sobre o meio processual invocado para este efeito pelos autores e que os réus contestaram;

iii) Os juízes aplicam um desvalor de invalidade à norma do art. 19º do RJAIA por esta contrariar a Directiva, quando o seu desvalor é a inaplicabilidade (ainda que não se conceda que de facto havia incompatibilidade);

iv) Os juízes não valoram correctamente o facto de quem aprecia da qualidade ou viabilidade do EIA é a Administração e não os particulares, imputando a estes o aparente “dever” de fazer um EIA imparcial: quem tem de apurar da qualidade ou dan suficiência do EIA é a Administração e não os particulares que o fazem;

v) Os juízes não têm mais uma vez razão ao argumentarem que faltando a ponderação técnica de uma decisão expressa de AIA, a entidade licenciadora não teria capacidade técnica para o fazer: em primeiro lugar, mesmo que não o tivesse, a responsabilidade desse facto é da Administração e não do particular (não se pode prejudicar este por um órgão administrativo não tem a capacidade técnica que deveria ter); em segundo lugar, houve uma decisão técnica – há parecer desfavorável da comissão em causa que será valorada depois pelos órgãos competentes; em terceiro, e decisivo, a decisão do AIA é do Ministro do Ambiente, que não só é uma decisão político-administrativa, tal como foi a do Presidente da CM, como é a decisão que pondera todos os efeitos ambientais e sociais do projecto, como ainda o mesmo afirmou em audiência que concordava com o projecto. Mas em qualquer caso, não há uma valoração de diferente forma entre a que o Presidente da CM fez e o Ministro faria: ambos partirão de um juízo político-administrativo de ponderação global. E este regime de compatibilidade com a directiva da decisão final política do Ministro não é posto em causa pela mesma;

vi) Os juízes fazem um juízo de inconstitucionalidade da norma do art. 19º do RJAIA. Mas daí não retiram consequências de desaplicação da norma por esta ser inconstitucional, logo nula. Além disso, não se pode materialmente concordar com a argumentação: a figura do deferimento tácito existe no Direito Administrativo para protecção do particular, fundada em princípios que o tribunal não contesta, e que, num quadro de relação multilaterais de Direito do Ambiente, prejudicaria sempre algum outro direito ou interesse de terceiro. Ora, pela argumentação exposta, a figura do deferimento tácito teria de ser banida do Direito Administrativo e do Direito do Ambiente, pois o pressuposto do tribunal é que um acto tácito não pondera interesses ou princípios constitucionais que vinculam a Administração. Mas é um pressuposto errado: o que está em causa não é não ponderar esses interesses, e diga-se já que eles foram ponderados no acto final, o que o RJAIA prevê e impõe, mas saber se se justifica naquela fase onerar o particular com a necessidade de acto expresso quando o RJAIA impõe a ponderação final pela entidade licenciadora – 19º n.º 5. E esta dispunha de todos os elementos técnicos e participativos dos cidadãos para o fazer;

vii) Os juízes partem do pressuposto que os resíduos seriam tratados no local do empreendimento ou que, mesmo não o sendo, as instalações a eles referentes estariam sujeitos a licença ambiental. Os réus concordam com esta última visão. Mas essa licença ambiental não tem que ver directamente com o projecto, nem é a falta dela que impede o início de obras imediatas: o que se discute na causa é se o empreendimento em si considerado necessita de licença ambiental, por um lado (se não também era sustentável que as fábricas que produzem os materiais estariam sujeitas a Licença ambiental – isso não se julga no caso) e, por outro, se pode o particular iniciar obras imediatas perante a urgência das mesmas. O Presidente da CM considera que o projecto não está sujeito a Licença ambiental, mas quando permite o início das obras por urgência não fecha a porta, nem o poderia fazer, a um entendimento por parte da APA que o projecto em si estava sujeito a Licença ambiental – por isso o fundamento do acto em urgência;

viii) Os juízes relevam uma falta de audiência dos interessados no caso de dispensa da Licença ambiental. Contudo, eles foram ouvidos na fase de licenciamento como os réus provaram por documento apresentado em tribunal que não foi contestado, houvesse ou não lugar a Licença ambiental – em caso algum há falta de audiência dos interessados;

ix) Os juízes avançam com outra solução possível para evitar o início imediato das obras. Sobre isso importa dizer que: a solução dos molhes não foi sequer posta em julgamento; que já em anos anteriores se utilizaram soluções destas sem o efeito prático pretendido; não ficou provado que outra e qual outra solução seria tecnicamente mais adequada ou memos lesiva; as obras iniciadas eram as preliminares de contenção da praia – é isso, e não a autorização “total”, que fundamenta a urgência.